Mestrando do Programa
de Pós-graduação em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde (Casa de Oswaldo
Cruz, Fiocruz), Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9348-1904
| acldvab.acd@gmail.com
Museu da Vida (Casa
de Oswaldo Cruz, Fiocruz), Brasil.
ORCID: https://orcid.org/
0000-0003-3139-0331 | carla.almeida@fiocruz.br
DOI
https://doi.org/10.5281/zenodo.5034883
Palavras clave:
divulgação científica | ciência e teatro | matemática |
estudo de recepção
Recibido: 1 de junio de 2021. Aceptado: 4 de junio de 2021.
Apresentamos neste artigo o estudo de recepção conduzido com o público de O problemão da Banda Infinita, espetáculo infantil sobre matemática produzido pelo Museu da Vida/Fiocruz (Brasil). O objetivo foi investigar o potencial do teatro como estratégia de divulgação científica. Para isso, analisamos fichas preenchidas por 250 estudantes de entre seis e onze anos que assistiram à peça em passeio escolar ao museu, com informações sobre sexo, idade e nível de diversão e um desenho sobre a peça. Os resultados sugerem que o espetáculo teve uma recepção positiva. De diferentes formas, eles retratam uma experiência significativa –tanto cognitiva quanto afetiva– no teatro do Museu da Vida. Isso pode contribuir para que desenvolvam uma percepção positiva da matemática (e do teatro) ao longo da vida, que era a principal intenção do espetáculo. Evidenciamos, assim, a potência da interação entre ciência e teatro como estratégia de divulgação científica e cultural.
We present here the reception study conducted with the audience of The Problem of the Infinite Band, a children's show on mathematics produced by the Museum of Life/ Fiocruz (Brazil). The objective was to investigate the potential of theater as a strategy for science communication. We analyzed forms filled by 250 students between six and eleven years old who watched the play in the museum, with information about gender, age and level of fun and a drawing about it. The results suggest the show had a positive reception. They portray a significant experience –both cognitive and affective– in the theater of the Museum of Life. This can help the students developing a positive perception of mathematics (and theater) throughout their lives, which was the main intention of the show. We highlight the power of the interaction between science and theater as a strategy for scientific and cultural engagement.
KEY WORDS
science divulgation | science and theater | math | reception study
Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais –o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto– dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. (Sagan, 1995: 44)
Em 1995, no livro O mundo assombrado pelos demônios, o famoso cientista e divulgador Carl Sagan já demonstrava profunda preocupação com um dos grandes paradoxos do mundo atual: apesar de a ciência ser fonte de conhecimento que impulsiona de forma significativa as transformações sociais e planetárias, sendo quase onipresente no cotidiano das pessoas, existe um grande distanciamento da sociedade em relação ao saber científico. No contexto da pós-verdade, em que fatos e evidências podem ser ocultados por crenças e preconceitos (Lewandowsky et al., 2017), esse paradoxo ganha novos contornos, tornando ainda mais preocupante essa desconexão entre ciência e sociedade.
Não é que as pessoas não se interessem por ciência ou desconfiem dos cientistas; pelo contrário. Pesquisas periódicas de percepção pública da ciência e tecnologia (C&T) realizadas em diversos países, há vários anos, mostram elevado interesse e otimismo da sociedade em relação à área e um nível de confiança alto em relação aos pesquisadores. No Brasil, por exemplo, a pesquisa mais recente do tipo, realizada em 2019, revela um grande interesse declarado dos brasileiros por temas científicos — em especial, saúde e meio ambiente –e um otimismo elevado em relação aos benefícios proporcionados pela ciência à humanidade– 73% dos entrevistados declararam, por exemplo, achar que C&T trazem só benefícios ou mais benefícios que malefícios para a sociedade. Os cientistas, por sua vez, despontam no topo do ranking de credibilidade como fonte de informação dos brasileiros (CGEE, 2019).
Mas este é só um lado da moeda. Os dados também mostram que, apesar do interesse, entusiasmo e confiança, os brasileiros consomem pouco e têm acesso restrito à ciência. Grande parte dos brasileiros não visita ou participa de atividades em espaços de ciência e tecnologia e museus –na pesquisa de 2019, apenas 6,3% dos entrevistados declararam ter visitado um museu de ciências nos 12 meses anteriores. O mesmo estudo apontou um grande desconhecimento dos brasileiros em relação às instituições científicas e aos cientistas do país– 88% não souberam indicar sequer uma instituição do setor e 90% não se lembraram de nenhum pesquisador brasileiro (CGEE, 2019).
O desafio que o descompasso apresentado representa para a democracia e a vida em sociedade não é pequeno, mas é um que precisa ser enfrentado com urgência, em diversas frentes. Uma delas é a comunicação, como defende Signates (2012), e mais especificamente a divulgação científica, que, justamente por meio do diálogo, busca fortalecer e enriquecer a conexão entre ciência e sociedade. Mais do que direito do cidadão ou dever dos cientistas, divulgar ciência se tornou uma necessidade no mundo atual, permeado pelo conhecimento científico, o qual precisa da sociedade para se desenvolver. Como defende Castelfranchi (2010: 18), “a comunicação pública da ciência está se tornando menos uma opção e mais uma parte integrante do metabolismo da tecnociência”. É a boa conexão entre ciência e sociedade que irá permitir, em última instância, o bom funcionamento da democracia.
Na busca por engendrar essa boa conexão, as artes têm despontado como uma forte aliada da divulgação científica. Por meio delas, tem sido possível engajar o público na ciência de forma mais profunda e sensível, apelando para uma faceta mais afetiva do que cognitiva da comunicação e da aprendizagem (Friedman, 2013). Para Wagensberg, uma referência na área da museologia científica, a emoção é elemento central na divulgação da ciência, sendo a base da interatividade nos espaços museais: “um bom museu de ciências é uma concentração garantida de emoções inteligíveis” (Wagensberg, 2001: 23). Ele também destaca o fato de a emoção, assim como a arte, transpor barreiras de idades, socioeconômicas e culturais (Barata, 2003), conferindo-lhe potencial para diversificar o público da divulgação científica. Assim, iniciativas conjugando ciência e arte têm ganhado crescente interesse na última década (Heras e Tábara, 2014; Matias et al., 2021).
Nesse contexto da interface ciência-arte, o teatro tem ganhado os holofotes, particularmente em centros e museus de ciência. Hughes, em livro sobre teatro em museus, defende o poder dessa arte de captar igualmente visitantes de cinco e de 85 anos, dos mais diferentes perfis, de divertir, surpreender e impressionar. “O teatro pode abrir os sentidos e tocar o coração e a mente, desafiando a compreensão do público e induzindo-o a repensar suas próprias ideias” (Hughes, 1998: vii). Desse modo, as artes cênicas têm propiciado um modo instigante de aproximar cidadãos do universo científico. O campo teatral trabalha “a sensibilidade, a percepção, a estética, a intuição e as emoções”, propiciando “novas perspectivas de ver a ciência, a tecnologia e o seu caráter humano” (Moreira et al., 2020: 556). Por meio do teatro, seria possível abordar temas científicos –muitas vezes duros e complexos– de forma envolvente (Baum e Hughes, 2010; Black e Goldowsky, 2000; Richards, 2008). Ao colocar no palco representações extraídas da sociedade, permeada hoje pela C&T, o teatro teria o potencial de fazer as pessoas refletirem sobre a sua própria realidade. Por fim, as interações entre ciência e teatro poderiam contribuir para despertar tanto o interesse do público pela ciência quanto pela arte (Lopes, 2005).
Com essas e outras motivações, o teatro tem se tornado uma estratégia cada vez mais usada na divulgação da matemática, ciência que, ao mesmo tempo em que ganha crescente relevância –pensemos, por exemplo, na computação, nos algoritmos e na inteligência artificial–, é vista como assustadora por grande parcela das pessoas. Segundo Carmo e Simonato (2012), as experiências negativas marcantes dos indivíduos ao tentar aprender essa disciplina durante o período escolar, somada à tendência da cultura ocidental de divulgar a matemática como sendo algo difícil, fazem com que muitas pessoas tenham ansiedade relacionada à essa disciplina ao longo da vida.
Diante da percepção amplamente negativa da matemática, educadores têm utilizado o teatro como linguagem no processo educacional, muitas vezes com a intenção de facilitar o ensino da disciplina. Exemplos desse uso pedagógico das artes cênicas são relatados no livro Matemática em cena: aprendizagens com ludicidade, criatividade e alegria (Mendes Filho e Paiva, 2016), com exemplos de peças sobre a matemática encenadas por alunos com fins de aprendizagem. Mas fora do ambiente escolar também há exemplos de companhias e peças teatrais que unem matemática e teatro com propósitos mais amplos. Sem deixar de contribuir com o campo educacional, visam despertar o interesse pela matemática e aproximá-la da sociedade, quebrando barreiras existentes entre elas, como é o caso da companhia norte-americana Matheatre, criada a partir do sucesso de Calculus: The Musical!, espetáculo apresentado no Minnesota Fringe Festival em 2006. Hoje a companhia viaja pelo país com quatro produções que visam promover a alfabetização científica e a curiosidade intelectual.[1]
O problemão da Banda Infinita, objeto da presente pesquisa, encaixa-se nesta última abordagem da matemática no teatro, com propósitos mais amplos. Produzida pelo Museu da Vida/Fiocruz, em 2018, no contexto do Biênio da Matemática, a peça é direcionada a crianças de seis a onze anos e visa proporcionar uma experiência positiva do espectador com a matemática. Sem pretensões pedagógicas, o espetáculo foi produzido com o intuito de ajudar a construir uma percepção mais positiva da disciplina ao longo da vida. Neste artigo, analisamos a recepção da peça O problemão da Banda Infinita entre o público escolar do Museu da Vida, buscando explorar o potencial do teatro como estratégia de divulgação científica, particularmente da divulgação da matemática.
Para haver teatro, pressupõe-se que haja um público, uma plateia que assistirá aos acontecimentos narrados no palco. O espectador é tão importante quanto a cena, pois o teatro tem como princípio a troca que ocorre entre o palco e a plateia no momento da encenação. Ou seja, sem espectador, não há espetáculo.
O encontro entre atores e espectadores durante o espetáculo é um instante único. Cada experiência é ímpar e cada encenação é um jogo em potencial. Para Guénoun (2014), é justamente a necessidade do homem de jogar é que sustenta o teatro. A troca de sensações e afetos entre palco e plateia se revela como uma grande brincadeira. O público, ao aceitar o que os atores propõem, é levado a brincar; não à toa, o nome em inglês para peça teatral (play) é o mesmo usado para o verbo jogar e brincar. Assim, a plateia age de forma ativa, mantendo uma conexão viva com o palco (Desgranges, 2015).
Em sua forma de se comunicar com o público, o teatro pode gerar, ao mesmo tempo, entretenimento, empatia e reflexão. Nesse sentido, a linguagem teatral é rica e variada, possui diversas abordagens e seu direcionamento dependerá da proposta a que a obra está atrelada. Do ponto de vista do espectador, a recepção do espetáculo, seja qual for o tipo de espetáculo, será permeada por suas experiências prévias, no teatro e na vida (Carneiro, 2017). Ela também será atravessada pelo contexto específico da encenação e pela disponibilidade do espectador para ser afetado pelos estímulos que o palco oferecerá durante a apresentação.
Nesse sentido, o público infantil tende a estar mais disponível do que os adultos para se entregar ao espetáculo. De maneira geral, as crianças costumam apreciar mais explicitamente a troca de energia com os atores e se deixar levar pela criatividade e imaginação, aderindo ao jogo de forma mais espontânea e, por vezes, física e verbalmente. Como coloca Guénoun (2014: 15): “Quem viu crianças (ou nem tão crianças assim) prontas para saltar para dentro da cena, examinarem o palco e suas práticas enquanto esperam na hora do salto, vislumbra o que queremos apontar aqui”.
Por meio da linguagem teatral, temas sensíveis e complexos podem ganhar os palcos mesmo quando o público-alvo são crianças. A ludicidade do teatro oferece uma forma particular para esse público se apropriar da obra, de seus conteúdos e suas mensagens, estimulando sua imaginação e criatividade. Ao participar ativamente do jogo proposto, esse espectador cria junto a obra no momento em que a assiste, “é ele quem constrói sentidos, significados e sensações a partir de seu repertório e da relação travada com o objeto” (Ferreira, 2011: 46). Nesse jogar, também desenvolvem a capacidade cognitiva e começam a se apropriar dos códigos do teatro.
Logo, o teatro para a infância proporciona uma experiência única e significativa para um público que está em fase de formação, tanto como cidadão da era científica quanto como fruidor da arte, apresentando-se com uma estratégia potente de democratização da ciência e da cultura, que é justamente a proposta do teatro no Museu da Vida/Fiocruz.
Em atividade contínua desde 1997, o Ciência em Cena é um espaço especialmente dedicado às artes cênicas do Museu da Vida, museu de ciências vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Com uma equipe multidisciplinar formada por artistas, divulgadores da ciência e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, o Ciência em Cena se diferencia de grande parte das iniciativas de teatro em museus de ciências no Brasil pelo seu caráter profissional e permanente (Moreira e Marandino, 2015; Almeida e Lopes, 2019). As peças produzidas no Ciência em Cena, explorando diferentes temas e formatos, integram a programação do Museu da Vida e se direcionam a diferentes públicos. Entre as 20 peças que fazem parte do seu repertório está o espetáculo infantil O problemão da Banda Infinita, objeto de estudo da pesquisa aqui apresentada.
Escrita por Rafael Souza-Ribeiro, autor contratado; dirigida por Leticia Guimarães, artista da equipe do Ciência em Cena; e encenada por artistas da casa e contratados, a peça tem como tema central a matemática e como público-alvo crianças de entre seis e dez anos. O espetáculo narra a aventura de um grupo musical de cinco amigos em busca das partes da corneta Max-Mega-Super-Ultra-Sonora, sem as quais não podem se apresentar. Os nomes dos personagens que integram a Banda Infinita –Pati, Alan, Artur, Tales e Pita– foram inspirados em matemáticos famosos. Cada um possui um traço peculiar: Pati, a única menina da banda, é madura e inteligente; Tales é o medroso do grupo; Artur é cadeirante e gosta de fazer graça; Pita é metido a corajoso; e Alan é o distraído dono da corneta.
A aventura começa quando a Banda Infinita está prestes a se apresentar e seus integrantes descobrem que quatro das cinco partes da corneta sumiram. Faltando meia hora para o show, os amigos saem em busca das partes da corneta em uma nave que os leva a diferentes lugares. A nave Trapizonga pertence à Mestra Ari, que é a personificação da aritmética, e tem referências geométricas em sua estrutura. Entre os locais explorados pelos amigos estão o espaço sideral, onde o som não se propaga, e a floresta, onde encontram a Cobra Vevel, uma cobra que quer ser cantora, e o Onça Pinima, uma onça macho que é camelô. Eles vão ainda ao fundo do mar e para dentro da barriga do cachorro Pi. Em cada um desses lugares, utilizando diferentes conceitos matemáticos, encontram uma parte da corneta. Ao final, conseguem juntar as cinco partes e montar a corneta Max-Mega-Super-Ultra-Sonora a tempo de se apresentarem. Depois de cada apresentação, os espectadores eram convidados a participar de um jogo de lógica concebido pelo setor educativo do Museu da Vida e liderado por um mediador do Ciência em Cena.
Além da matemática, a música é outro elemento central do espetáculo. Inspirando-se em ritmos como o carimbó do Norte e o coco de roda do Nordeste, o diretor musical Renato Frazão buscou representar a diversidade musical brasileira ao criar uma trilha original para a peça, tocada e cantada ao vivo pelos atores, com diversas referências ao universo matemático. Dois outros aspectos da peça merecem destaque por resultarem de escolhas cuidadosas feitas pela equipe do Ciência em Cena. Um deles é o fato de uma das protagonistas (a Pati) ser uma menina negra, com traços negros marcantes, e o outro é a inserção de um personagem cadeirante (o Artur) entre os integrantes da Banda Infinita. Essas escolhas são um reflexo da importância que o Museu da Vida e a Fiocruz têm dado ao debate sobre inclusão e acessibilidade (Almeida e Lopes, 2019).
O problemão da Banda Infinita estreou no Museu da Vida em agosto de 2018 e ficou em cartaz até novembro daquele ano. Em 2019, uma segunda temporada da peça integrou a programação do museu entre abril e novembro. Em ambas as temporadas, o espetáculo era oferecido ao público em dois turnos (manhã e tarde) de terça a quinta-feira e em apresentação única aos sábados. Somando o público das duas temporadas, um total de 8.378 visitantes assistiram à peça no Museu da Vida.
Descrevemos aqui o estudo de recepção conduzido com o público da peça infantil O problemão da Banda Infinita em sua primeira temporada no Museu da Vida, que atingiu um público total de 3.375 visitantes (sendo 2666 referente ao público escolar e 709, ao público espontâneo). O objetivo foi analisar o potencial do teatro como estratégia de divulgação científica tendo o espectador como figura central da análise. Em consonância com os estudos de recepção no campo do teatro e com as pesquisas em divulgação científica que dedicam um olhar atento ao público, enxergamos o espectador como coprodutor da obra teatral, com papel ativo e criativo na sua interpretação, interpretação esta mediada por suas condições socioculturais e experiências pessoais.
Para alcançar o objetivo apontado, adotamos diferentes metodologias, apoiados em autores como Minayo (2004), que defendem que as pesquisas qualitativas possuem especificidades que pressupõem a utilização de um número variado de métodos e instrumentos de coleta de dados. Além disso, os estudos de recepção pressupõem um bom entendimento do contexto de produção e circulação das mensagens para que se possa compreender as diferentes formas de o público se apropriar delas. Assim, a primeira etapa da pesquisa de campo consistiu em uma entrevista semiestruturada com a diretora da peça, Leticia Guimarães, que teve como intuito investigar o contexto de produção do espetáculo, as intenções por trás dela e os processos de criação. Essa entrevista, realizada em junho de 2018, trouxe alguns dados importantes para o desenvolvimento da pesquisa. Por exemplo, foi possível identificar, por meio dela, o objetivo da montagem, que seria “fazer com que quem a assista tenha uma boa experiência com a matemática, uma positividade do aprendizado com a matemática”, e sua mensagem preferencial: “a matemática é uma ciência que faz parte das nossas vidas, de tudo que está a nossa volta. Então, não devemos temê-la ou odiá-la. O conhecimento é um direito de todos: liberta, dá poder e voz”. Quanto ao processo de criação do espetáculo, a diretora relatou que este envolveu muita pesquisa, com leitura de livros didáticos, de literatura infantil e análise de desenhos feitos por crianças. Esses dados embasaram tanto a construção dos demais instrumentos metodológicos do estudo quanto a análise dos resultados.
A segunda etapa compreendeu o acompanhamento de quatro ensaios do espetáculo, incluindo o ensaio geral aberto ao público. O objetivo dessa etapa foi acompanhar de perto parte do processo de criação do espetáculo e se familiarizar com todos os seus elementos –texto, encenação, música, figurino, cenário, objetos cênicos, entre outros–. Todas as observações foram primeiramente registradas em um diário de campo e, posteriormente, utilizadas para construir tanto a ficha preenchida pelo público na terceira etapa da pesquisa quanto o formulário de análise dessas fichas. A partir do acompanhamento dos ensaios foi possível, por exemplo, conhecer bem a trama e seus personagens, decupar todas as cenas e todos os elementos cenográficos e identificar quais e como conceitos da matemática foram introduzidos na peça, textualmente e esteticamente. Também foi possível mapear os momentos com marcas claras de humor e de interatividade entre público e plateia.
Tabela 1. Informações sobre a coleta de dados do estudo.
TOTAL |
Etapa 1 |
Data |
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429 |
Entrevista 1 |
05/06/2018 |
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Etapa 2 |
Data |
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Ensaio 1 |
23/07/2018 |
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Ensaio 2 |
30/07/2018 |
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Ensaio 3 |
03/08/2018 |
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Ensaio 4 |
14/08/2018 |
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Etapa 3 |
Data |
Turno |
N. fichas PEsc |
N. fichas PEsp |
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Apresentação 1 |
25/08/2018 |
único |
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36 |
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Apresentação 2 |
18/09/2018 |
manhã |
71 |
|
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Apresentação 3 |
18/09/2018 |
tarde |
41 |
|
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Apresentação 4 |
20/09/2018 |
manhã |
21 |
|
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Apresentação 5 |
20/09/2018 |
tarde |
94 |
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Apresentação 6 |
27/09/2018 |
manhã |
13 |
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Apresentação 7 |
29/09/2018 |
único |
|
48 |
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Apresentação 8 |
04/10/2018 |
manhã |
19 |
|
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Apresentação 9 |
04/10/2018 |
tarde |
41 |
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Apresentação 10 |
13/10/2018 |
único |
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45 |
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300 |
129 |
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Pesc = público escolar |
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Pesp = público espontâneo |
Instrumento principal do estudo de recepção, a ficha mencionada continha três perguntas referentes, respectivamente, ao sexo, à idade e ao nível de diversão do espectador em relação à peça. Uma quarta questão consistia em um espaço relativamente grande onde o espectador era convidado a escrever algo ou fazer um desenho sobre a peça que acabara de ver (Figura 1). A ficha, que era distribuída ao fim do espetáculo, foi aplicada em um total de dez apresentações, sendo sete em dias úteis da semana, abrangendo o público escolar, e três em finais de semana, abarcando o público espontâneo. Coletamos um total de 429 fichas, sendo 300 referentes ao público escolar e 129 ao público espontâneo (a Tabela 1 apresenta todas as etapas do estudo).
Cabe mencionar que essa etapa da pesquisa era apresentada às crianças como uma atividade lúdica e livre. Nesse sentido, buscamos orientá-las o menos possível no preenchimento das fichas, junto com as quais eram disponibilizados lápis de cor e canetas coloridas para a realização dos desenhos (Figura 2). Nosso objetivo com as fichas era reunir elementos para uma melhor compreensão sobre a recepção da peça pelos espectadores.
Neste artigo, apresentamos os resultados da análise de parte dessas fichas, mais precisamente daquelas preenchidas pelo público escolar –público majoritário do Museu da Vida (Mano et al., 2015) e da primeira temporada da peça no museu– na faixa etária à qual a peça se destina, ou seja, espectadores entre seis e onze anos. A partir desse recorte, formamos um corpus inicial de 250 fichas.
Analisamos estatisticamente as respostas das três primeiras questões das 250 fichas. Já em relação à quarta questão, fizemos mais um recorte para este artigo. Optamos por enfocar aqui a análise dos desenhos, visto que a maioria dos espectadores que compõem o corpus inicial (160 de 250) optou por se expressar sobre a peça por meio desse recurso. Estamos cientes de que a análise dos textos também contribuiria para a compreensão da recepção da peça, no entanto, por questão de espaço e foco, e por se tratar de um público que ainda não domina a escrita, decidimos privilegiar neste artigo os desenhos e deixar para explorar os textos em uma futura publicação, com corpus ampliado.
A análise dos 160 desenhos teve como ponto de partida o estudo de Studart (2000) com crianças em exposições interativas no Reino Unido. Com base na análise de conteúdo de desenhos de visitantes entre sete e onze anos, Studart identificou diferentes aspectos de suas experiências nesses espaços, incluindo aspectos cognitivos, afetivos e sociais. A pesquisadora destacou o alto nível de precisão e de atenção das crianças ao detalhar os aparatos das exposições analisadas, corroborando outros estudos que revelam habilidades impressionantes das crianças de observação e memória das experiências que não necessariamente conseguiriam expressar verbalmente (Studart, 2005). Considerando as características próprias de O problemão da Banda Infinita, bem como os objetivos da peça e da pesquisa, e realizando um exame minucioso de parte dos desenhos do corpus, construímos um formulário no Excel para a tabulação dos desenhos das crianças, contendo as categorias e subcategorias apresentadas na Tabela 2. Cada desenho foi categorizado na planilha de Excel, de acordo com a presença/ausência dos elementos neles identificados, que depois foram quantificados para a análise.
Tabela 2. Categorias e subcategorias utilizadas na análise dos desenhos
Personagens |
Pati |
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Artur |
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Pita |
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Alan |
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Tales |
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Cobra Vevel |
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Onça Pinima |
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Mestre Ari |
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Elementos musicais |
Instrumentos |
Corneta |
Notas musicais |
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Outros |
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Elementos matemáticos |
Números |
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Formas geométricas |
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Outros |
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Elementos cênicos |
Fixos |
Árvore |
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Outros |
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Móveis |
Nave |
|
|
Banco |
|
|
GPS |
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Água viva |
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Outros |
Experiência física no teatro |
Plateia |
Auto-representação |
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Refletores |
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Palco |
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Outros |
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Experiência afetiva |
Palavras |
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Desenhos |
coração |
|
|
emoji |
|
|
joia |
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|
outros |
Tabela 3. Os diferentes
valores de N empregados na análise das fichas referentes ao público escolar.
Recortes |
Total de fichas |
Fichas de público escolar |
Fichas do público-alvo da peça (6-11 anos) |
Fichas com desenho |
N. |
429 |
300 |
250 |
160 |
Perfil do público e nível de diversão
Das 250 fichas preenchidas por escolares com idades entre seis e onze anos, a maioria foi preenchida por respondentes que se identificaram como meninas (57%); e outra parte significativa por espectadores que se declararam como meninos. Uma percentagem ínfima (2%) preferiu não responder (Gráfico 1). Essa distribuição por gênero identificada no nosso corpus, com uma maioria de indivíduos do gênero feminino, é compatível com a dos visitantes do Museu da Vida (Mano et al., 2015).
N (espectadores) = 250.
Para medir o grau de diversão dos espectadores consultados em relação à peça, criamos uma escala de diversão com cinco níveis representada por “emojis”. Por meio dela pretendíamos medir o quanto a peça agradou (ou desagradou) o público. Os dados mostram que a grande maioria dos espectadores consultados se divertiu muito com a atividade, tendo marcado o nível mais alto de diversão da escala (175). Um pouco mais de um quarto marcou o segundo nível mais alto da escala (68). Podemos afirmar, portanto, que um dos principais objetivos da peça, que era proporcionar uma experiência positiva para o seu público, foi alcançado (ver Gráfico 2).
N (espectadores) = 248.
O que mostram os desenhos
Como já mencionamos, dos 250 escolares de seis a onze anos que participaram do nosso estudo, 160 se expressaram sobre o espetáculo por meio de desenhos (majoritariamente ou equilibradamente), o que sugere a preferência desse público por um meio mais lúdico de expressão e sinaliza positivamente para a escolha desse método de coleta de dados. Assim, até o fim desta seção, nos debruçaremos sobre os 160 desenhos relativos ao item 4 da ficha, elaborados por crianças de entre seis e onze anos que estiveram entre o público escolar da peça O problemão da Banda Infinita.
Os integrantes da Banda Infinita foram os elementos mais representados nos desenhos analisados. Dos 160, mais da metade (86) retratou pelo menos um dos cinco protagonistas da peça. Quase um terço (50) representou mais de um personagem do grupo, sendo que a maior parte (19) retratou o grupo completo (Figura 3). Esses dados revelam uma grande empatia do público com os personagens centrais da peça. Eles sugerem também uma valorização, por parte dos espectadores, da amizade entre os amigos e do espírito de grupo, que foi fundamental para resolverem o problema em questão.
Dentre os cinco integrantes da Banda Infinita, a Pati, a única mulher do grupo, foi a mais representada nos desenhos, estando presente em 73 deles –mais adiante, faremos uma análise mais aprofundada desses desenhos–. Os demais protagonistas foram representados de forma mais equilibrada: Alan foi o segundo mais retratado nos desenhos (43), depois Artur (36), seguido por Pita e Tales (ambos em 33 desenhos). Os três outros personagens da peça –a Mestre Ari, a Cobra Vevel e o Onça Pinima– foram menos retratados, sendo a Mestre Ari, que tem diversas aparições na peça, a que contabilizou mais representações (20) (Gráfico 3). Isso indica que a relevância dos personagens no espetáculo –em termos de número de aparições e da sua centralidade no enredo– se reflete de alguma forma no desenho das crianças.
N (desenhos) = 107.
Depois dos protagonistas, os elementos mais representados nos desenhos foram aqueles que remetem ao universo da matemática, entorno da qual gira toda a história da peça. Dos 160 desenhos, 49 contêm alguma referência à matemática, sendo as formas geométricas, de longe, os elementos matemáticos mais desenhados (48), seguido dos números (3) em dois desenhos, há tanto formas geométricas quanto algarismos (Figura 4). Isso sugere que quase um terço dos espectadores consultados não só relacionou o espetáculo ao universo da matemática, como essa relação deixou marcas em sua memória e eles foram capazes de registrá-la. Já o fato de terem desenhado sobretudo as formas geométricas indica o quanto a memória visual sobressaiu em relação à memória verbal, visto que as formas geométricas estão presentes em diversos elementos cênicos e no figurino dos personagens, mas são pouco mencionados no texto da peça. No texto, os números é que possuem maior destaque.
A música, outro elemento central
do espetáculo, também foi representado com relativa frequência nos desenhos. Dos
160, 37 apresentaram algum elemento referente ao universo musical. Entre eles, os
instrumentos foram os mais representados (32). Em meio a diversos instrumentos desenhados,
destaca-se a corneta Max-Mega-Super-Ultra-Sonora, que tem papel fundamental
na peça. O instrumento, cujas partes os integrantes da Banda Infinita precisam encontrar,
pode ser identificado claramente em 15 desenhos (Figura 5). Além deles, microfones
foram registrados em nove desenhos e notas musicais, em três. Os dados sugerem que,
mesmo sendo um elemento abstrato, que mobiliza mais a audição do que a visão, parte
dos espectadores soube dar materialidade à música, registrando-a em seus desenhos,
sobretudo por meio de elementos presentes concretamente no espetáculo –os instrumentos
musicais–. O fato de um deles
ganhar destaque na trama também pode ajudar a explicar esses registros, que indicam
uma associação positiva entre a música, o espetáculo e a experiência que tiveram
no teatro do museu.
Além da corneta, outro elemento cênico que ganhou destaque nos desenhos dos estudantes consultados foi a nave Trapizonga (23), o meio de transporte usado pelos integrantes da Banda Infinita para procurar as partes desaparecidas da corneta em diferentes lugares (Figura 6). A nave, composta por diversas formas geométricas, não só é um elemento-chave da narrativa como também aparece de forma recorrente no espetáculo. O fato de ser um objeto grande e inusitado também pode ajudar a explicar a presença recorrente da nave nos desenhos. Outros elementos cênicos foram representados nos desenhos, embora de forma bem menos frequente. Entre eles estão as árvores do cenário da floresta e a água-viva do fundo do mar, os quais aparecem em cenas específicas do espetáculo.
Considerando que a experiência
de assistir a uma peça teatral tem a sua singularidade, buscou-se investigar se
de alguma forma a experiência física de estar no teatro foi representada nos desenhos.
Nesse sentido, identificamos alguns poucos elementos que podem ser associados a
ela. Por exemplo, em onze desenhos, os estudantes registraram a plateia, sendo que,
em seis deles, dão destaque a uma criança sentada nela, no que acreditamos ser uma
auto-representação. Identificamos ainda desenhos de refletores (5) e do próprio
palco (1) (Figura 7). A baixa representação dessa experiência, a nossa ver, não
significa que ela tenha sido pouco significativa para os estudantes. Ela talvez
sinalize que a parte mais atraente dessa experiência é a cena e o que acontece nela,
principalmente com os protagonismos –como o conjunto de desenhos sugere–. Parece-nos que os estudantes
ficaram tão imersos na história que não pensaram tanto no fato de estar num teatro.
Outro indício de que a experiência
dos estudantes foi significativa, além do fato de a grande maioria ter declarado
um alto nível de diversão com o espetáculo, foi a identificação nos desenhos de
uma série de elementos associados a sentimentos e a emoções, o que revela uma experiência
afetiva dos estudantes no teatro do Museu da Vida. Identificamos, por exemplo, o
desenho de corações (11), emojis positivos (9) –sorrindo, chorando de rir e mandando
beijo– e joias (2), bem como palavras que expressam forte envolvimento emocional
com a atividade teatral e reforça a recepção positiva da mesma entre os estudantes
(8) –“Eu amei muito a peça”, “Amei tomara que todo mundo tenha gostado”, “Eu adorei
foi muito legal” (Figura 8)–.
Como vimos na seção anterior, a Pati, única integrante feminina da Banda Infinita, foi representada em 73 dos 160 desenhos do público escolar –sendo a protagonista da peça mais retratada–. De uma maneira geral, houve significativamente mais registros da personagem nos desenhos feitos por meninas do que por meninos (60 contra 13). Esses dados sugerem uma maior empatia/identificação com a Pati por parte do público feminino do espetáculo (Gráfico 4).
N (desenhos em que Pati é representada) =73.
A personagem foi interpretada intencionadamente por uma atriz negra, com seus traços negros ressaltados. Logo, buscamos observar se esses traços foram explicitamente registrados nos desenhos em que Pati foi representada. Verificamos que 32 dos 73 desenhos em que Pati aparece ela é representada com traços negros, caracterizados, por exemplo, por cor da pele marrom e cabelos cacheados e “black power” (Figura 9).
Os dados sugerem que a personagem causou empatia/identificação na plateia, pois, dentre todos os personagens, é ela quem aparece mais representada nos desenhos, sobretudo em desenhos feitos por meninas, o que indica que a empatia/identificação foi ainda maior entre esse público. O fato de a personagem Pati ser mulher e negra chamou a atenção de uma parcela expressiva dos espectadores, visto que seus traços foram retratados em diversos desenhos. Além disso, observamos que as representações da personagem eram sempre positivas; ela aparece sorrindo, em destaque e, por vezes, acompanhada de texto com palavras elogiosas.
Neste artigo, analisamos a recepção de uma peça teatral sobre matemática voltada ao público infantil, apresentada no Museu da Vida/Fiocruz. O objetivo foi investigar o potencial do teatro como estratégia de divulgação científica tendo o espectador como figura central da análise. Para isso, entrevistamos a diretora da peça, acompanhamos ensaios do espetáculo e pedimos que espectadores preenchessem fichas com três perguntas e espaço para eles se expressarem em relação à atividade teatral. Apresentamos os principais resultados da análise das fichas preenchidas por espectadores em visita escolar ao museu, com entre seis e onze anos, dando enfoque aos desenhos.
Os resultados sugerem que o espetáculo teve uma recepção positiva por parte desses espectadores. De diferentes formas, eles retratam uma experiência significativa –tanto cognitiva quanto afetiva– no teatro do Museu da Vida. Primeiramente, os dados evidenciam um alto nível de diversão da plateia. Depois, indicam uma grande adesão dos estudantes consultados ao jogo teatral, sobretudo no que diz respeito ao enredo e aos seus protagonistas. Estes últimos foram retratados em quase todos os desenhos analisados, relevando uma relação de forte empatia entre os atores e o público, além de sugerir uma valorização da relação de amizade entre o grupo, algo que é explorado no espetáculo.
Depois dos protagonistas, os elementos mais representados foram aqueles que remetem ao universo da matemática, temática central do espetáculo, cuja presença extrapolou o texto, sendo incorporada a diversos outros elementos cênicos –por exemplo à nave Trapizonga– e ao figurino da peça, representada sobretudo por formas geométricas. A grande representação dessas formas e de outros elementos cênicos nos desenhos e o nível de detalhamento e precisão de alguns deles revelam uma elevada capacidade de observação e de memória visual por parte das crianças, corroborando o estudo mencionado de Studart (2005) e outros e ainda ressaltando a pertinência do desenho como instrumento de coleta de dados.
O universo da música também foi representado de forma recorrente pelos estudantes e novamente aqui os elementos mais registrados foram aqueles que mais aparecem em cena, no caso, os instrumentos musicais e particularmente a corneta, que desempenha papel relevante no enredo do espetáculo. Tantos as formas geométricas quanto os instrumentos musicais desenhados dão forma a universos bastante abstratos, tanto da matemática quanto da música, o que é interessante nessa faixa etária, em que possuem habilidades de abstração ainda restritas. Ainda no que tange aos resultados relacionados aos desenhos, foi interessante observar registros que podemos associar à experiência afetiva dos espectadores no teatro. Isso mostra não apenas que o teatro foi capaz de ativar as emoções desse público, mas também que, por meio da pesquisa, alguns espectadores foram capazes de extravasar as emoções sentidas para os desenhos.
Como vimos, a personagem Pati, a única mulher da Banda Infinita, foi a mais representada nos desenhos analisados, sobretudo entre as meninas da amostra, o que pode sugerir uma identificação de gênero entre palco e plateia. Além disso, em quase metade dos desenhos em que está presente, Pati é representada com traços negros, o que sugere que esses traços chamaram a atenção e ficaram na memória de parte do público. Isso sugere que de certa forma o espetáculo foi bem-sucedido em suas expectativas de questionar preconceitos e quebrar barreiras sociais.
Relacionando os resultados obtidos ao objetivo mais geral do espetáculo, que era, em última instância, promover uma percepção positiva da matemática ao longo da vida, podemos apenas fazer algumas reflexões especulativas, visto que coletamos dados imediatamente após a apresentação da peça. Considerando o fato de tanto a emoção quanto a diversão serem elementos-chave para a memorização das diferentes experiências que vivenciamos em nosso cotidiano, o fato de as crianças relatarem uma experiência divertida e afetiva ao participar da atividade pode ser um fator importante para que desenvolvam gosto pelo teatro e pela matemática. Experiências futuras de recepção, tanto com o teatro quanto com a matemática, serão, como vimos, sempre permeadas por experiências prévias, ou seja, essa experiência poderá ter impacto positivo em seus futuros encontros com essa arte e com essa disciplina, deixando-as mais abertas a novas experiências. Essa possibilidade é reforçada pelo fato de os espectadores consultados terem associado concretamente a peça com a matemática. No entanto, não é possível saber ao certo o quanto essa experiência pontual é capaz de deixar marcas e de fato influenciar a relação dos espectadores com a matemática ao longo de suas vidas. Para isso seria necessário um estudo de maior escopo e de longo prazo.
Do ponto de vista mais amplo da recepção teatral, observamos que, além do aspecto divertido e afetivo da experiência analisada, o espetáculo estimulou a criatividade e a imaginação dos espectadores, que foram capazes de recriar o mesmo, a seu modo, por meio dos desenhos, destacando neles momentos e elementos que lhes foram mais marcantes e fazendo associações com o universo da matemática e da música que, por vezes, extrapolavam o que estava de fato presente na peça. Corroborando Ferreira (2011), vimos os espectadores criando suas próprias interpretações sobre o espetáculo, a partir de seu repertório e da relação travada com o objeto, desenvolvendo, nesse jogo, sua capacidade cognitiva e começando a se apropriar tanto dos códigos da matemática quanto do teatro. Considerando que esse público está em plena fase de formação, reforçamos aqui a potência da interação entre ciência e teatro como estratégia não apenas de divulgação da ciência como também da cultura.
Assim, concluímos que, no caso de O problemão da Banda Infinita, unir ciência e teatro foi uma estratégia acertada para aproximar conhecimento científico, artístico e afetivo do público e promover a inclusão social. A peça, ao mobilizar a sensibilidade, a percepção, a estética e as emoções, foi capaz de abordar um tema considerado difícil e complexo por boa parte da população de forma envolvente, lúdica e divertida, corroborando outros estudos e autores (Baum e Hughes, 2010; Black e Goldowsky, 2000; Moreira et al., 2020; Richards, 2008), evidenciando mais uma vez o papel da arte como uma aliada importante da divulgação científica.
Nesse sentido, vale destacar alguns aspectos que, a nosso ver, foram fundamentais para a recepção positiva da atividade. O primeiro deles diz respeito ao alto investimento feito na estética teatral. O fato de a matemática permear diversos elementos do espetáculo, incluindo cenário, figurino e outros elementos cênicos, para além do texto, parece ter sido fundamental para que os espectadores a associassem à peça e que essas associações ficassem gravadas em sua memória. Os dados também sugerem que a construção cuidadosa dos personagens e da relação entre eles foram centrais para que o público estabelecesse uma troca empática com os protagonistas da peça e, em alguns casos, para que se criasse identificação entre personagens e espectadores. Por fim, consideramos que incluir uma protagonista negra e outro cadeirante no espetáculo foi uma decisão acertada, no sentido de explorar o teatro como espaço de se quebrar barreiras sociais, que deve ser encorajada nas práticas teatrais desenvolvidas no contexto da divulgação científica.
No que tange mais especificamente à pesquisa, avaliamos positivamente a escolha dos desenhos como método para analisar a recepção do espetáculo. Por outro lado, reconhecemos o alto componente de subjetividade inerente a ele. Para contrabalancear essa subjetividade, teria sido interessante realizar entrevistas com o público associadas aos desenhos, na tentativa de tornar sua interpretação mais objetiva. No entanto, a logística para viabilizar isso é complexa em visitas de grupos escolares a museus, visto que são grandes e têm pouca flexibilidade de tempo. Sem um contato mais direto com as crianças consultadas, também nos faltam informações mais detalhadas sobre seu contexto, o que é relevante em estudos de recepção. Por esses e outros motivos, não podemos interpretar os dados de forma conclusiva. De todo modo, considerados os resultados relevantes e encorajadores para o uso do teatro na divulgação científica.
Por meio dessa estratégia efetiva e afetiva de aproximação da sociedade com a ciência e particularmente com a matemática, pode-se vislumbrar uma conexão mais forte e significativa entre elas, capaz de desconstruir imagens distorcidas e às vezes até negativas dessas áreas. Essa conexão é urgente no contexto da pós-verdade, em um momento em os fatos científicos são colocados em xeque e os negacionismos ganham força e espaço, representando uma grande ameaça para a democracia.
Mas, para que haja de fato essa conexão, a nosso ver, não basta que a sociedade compreenda melhor a ciência e a tecnologia; é preciso que a ciência e a tecnologia entendam melhor a sociedade. Por isso estudos de recepção como esse, com foco no público, são essenciais. Só entendendo melhor a perspectiva da audiência –como várias vozes do campo da divulgação científica defendem há anos (Lewenstein, 1992)– é que talvez consigamos evitar o desastre anunciado por Sagan.
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